Pema Dordje nos recebeu, conversou por mais ou menos 3 horas sobre a nova cidade, a situação do mundo hoje e as mudanças que estavam por acontecer. Na despedida abençoou a todos, e disse a mim que o fato de estar ali, era para o cumprimento de um karma que estaria resgatando de vidas passadas. Tentei, mas não descobri o significado racional daquelas palavras.
Homem de quase 100 anos, lúcido e bem humorado, Pema Dordje é o mestre espiritual de toda aquela região. Ele queria conversar com Khenpo sobre a criação de uma nova cidade na região de Apona, onde existem montanhas sagradas e são colhidos os fungos cortyceps. Esses fungos são comercializados na China por 10 dólares cada, pois são poderosos na cura de várias doenças e muito bons para o sistema imunológico do corpo humano.
Na volta, o contorno das montanhas, a luz, o céu parcialmente nublado com clareiras de céu azul, formavam uma paisagem de paz e serenidade inesquecíveis. Apesar da distância, da dificuldade de chegar lá, compreendi o porque das pessoas estarem lá para apreender o budismo com Pema Dordje. Ele ensina há mais de quarenta anos naquela gruta e pessoas de todo o mundo já estiveram por lá. Naquele momento um americano era seu discípulo entre outros tibetanos que moravam em volta da sua gruta de pedra com extensão de alvenaria e cobertura de grosso panos.
No dia seguinte viajamos para um outro lado do vale e fomos à casa de Pema Tashi, irmão de Khempo, que é um talentoso escultor e um dos responsáveis pela construção da nova cidade em Apona que já havia sido iniciada. Dormimos ali. Amanheceu com uma forte nevasca, o que nos impediu de ir às montanhas sagradas do vale de Apona. Foi a primeira vez que vi a neve caindo naquela região, pois estávamos no verão. Aproveitei para fazer muitas fotos.
Apona é um vale de uma energia impressionante. No caminho dá para sentir que se está indo a um local muito especial (difícil de descrever a sensação). As pessoas que vivem lá são diferentes, as pedras, a ravina, plantas de folhas grandes porém se espalhando pelo chão, tudo muito diferente do que eu já vi. Voltamos no fim do dia, pois a intenção de Khenpo era seguir adiante e ir ao encontro de sua irmã que era monja tibetana e vivia com sua mãe em um retiro mais adiante e mais acima daquelas montanhas.
Na manhã do outro dia empacotamos tudo em um jipe, pois a caminhonete que viemos de Yu Shu não resistiria a subida que era íngreme e ainda lamacenta pela nevasca recente. Uma viagem interminável, lenta, dessas que parece que estamos em uma carroça pelos solavancos provocados por buracos e pedras no caminho. Chegamos a um monastério grande com muitos monjes e monjas, inclusive muitos jovens que eram entregues pelas famílias da região para serem educados nos ensinamentos budistas. Alguns parentes de Khenpo nos seguiam de moto formando um grupo de 6 pessoas, todos homens. No monastério algumas monjas se incorporaram ao grupo para o transporte da carga que levaríamos até o local de retiro onde estavam a irmã e mãe de Khenpo.
Duas horas e meia de caminhada, primeiro descendo um morro de ravina baixa e húmida. Depois subimos outro, muito pedregoso em que a inclinação era tão forte que a gente as vezes não conseguia manter toda a ao planta do pé na horizontal. As mãos seguravam nas pedras e galhos dos arbustos para o caso de escorregar. A direita tinha um abismo de uns 400 a 500 metros de declive. Ou seja, qualquer vacilo ou falta de atenção ali era morte certa.
Disseram a mim que nunca houve um acidente naquela caminhada. Aquela foi um das situações mais intensas e arrebatadoras da minha vida. Tinha momentos que, pelo cansaço, pensei que não conseguiria ir adiante. Punha a perna na frente para caminhar, mas não tinha certeza de que ela iria aguentar o peso do corpo. Pema Tashi caminhava ao meu lado um pouco mais abaixo. Percebeu minha dificuldade e estava sempre com as mãos braços prontos para me escorar, se precisasse.
Fui ao extremo, percebi os limites do corpo e da mente. Mas tinha que resistir. Mais tarde quando perguntaram minha idade (62 anos), ficaram admirados com a minha coragem de encarar aquela empreitada. Embora o corpo estivesse sofrendo, pois estava ainda sobre a influência do cigarro que tinha largado um mês antes e a falta de exercícios, minha mente estava clara e forte. Poucas pessoas conhecem o local daquele retiro que era no topo de uma montanha onde havia umas tendas, que serviam de cozinha e dormitório e cavernas nas pedras em que as monjas do local dormiam.
Uma casinha de mais ou menos 3 x 3 metros feita de terra e capim servia como local da prática e ensinamento do budismo. Ficamos ali onze dias. A água era escassa e era preciso ir ao outro lado da montanha buscá-la. Era usada somente para cozinhar, para escovar os dentes e lavar o rosto. Banho, nem pensar. Entre a subida às montanhas e a volta a Yu Shu, passei 16 dias sem um banho ou troca de roupa. Eles vivem assim. Como quase sempre é frio não sentem a necessidade de banho e troca de roupa, pois estão sempre com o mesmo traje vermelho dos monjes e monjas.
Khenpo dava aulas sobre o budismo todos os dias para aquele grupo de pessoas em tibetano. Como eu não entendia o idioma, saía pelos arredores para fotografar e fazer minhas meditações isolado. Houve alguns momentos em que fiz a revisão da minha vida com muita profundidade tentando conectar tudo com aqueles momentos. Houveram também sensações que me faziam querer largar tudo, sumir dali, voltar à civilização. Não podia, mesmo porque não conhecia o caminho de volta e não tinha ninguém pra me levar. Fisicamente me senti numa prisão, mas mentalmente foram momentos de total liberdade, pois não tinha nada a fazer, senão estar ali, presente, vivendo experiências únicas nunca vividas.
A viagem de volta até a vila da irmã de Khenpo levou um dia inteiro, pois no caminho visitamos dois monastérios e a casa de um médico tibetano, amigo de sua família. Na volta para Yu Shu encontramos outro grupo de pessoas conhecidas e descemos as montanhas em caravana. A primeira coisa que fiz foi me hospedar em um hotel para tomar banho e trocar de roupa. Ficamos mais dois dias lá, fazendo vistas à monges e recebendo-os. Eles pediam para Khenpo voltar a lecionar em seus monastérios, pois sentem falta de professores por lá.
Voltamos a Pequim e ficamos dois dias na cidade. Fiquei impressionado com a poluição e o fog misturados à beleza dos prédios no centro da cidade, com os parques, com a feira de antiguidades, com as estátuas de pedra da Ópera de Pequim, etc.
Na volta para Memphis, durante uma semana, fiz uma revisão das quase quatro mil fotos tiradas durante a viagem. Khenpo queria fazer uma apresentação aos seus alunos, junto com alguns vídeos que gravamos com Pema Dodjee e com o filho de cinco anos de Pema Tashi, um menino que esta sendo preparado espiritual e culturalmente para daqui a vinte anos governar a cidade que será construída em Apona.
Em meados de novembro voltei para Nova Iorque, onde vivia meu filho Iaell e meu neto Iago, para depois retornar ao Brasil. Ver aquela cidade depois de uma viagem ao Tibet foi surpreendente. As impressões foram muito diferentes das que eu tive quando voltei de Bolder, Colorado. O contraste e a diferença do clima, das pessoas, dos olhares, da paisagem me deram a certeza que no mundo tudo evolui e tudo se torna possível.
Pedro Alipio Agosto 2010 – 2018