Na época do nosso reencontro Khenpo tinha entrado com uma requisição de cidadania americana e estava à espera da diplomação e do passaporte, previstos para final de julho de 2017. O visto para entrar na China também demorou e embarcamos somente no final de setembro, no voo Chicago-Pequim. Além de mim viajaram seus dois primos que vivem nos EUA. Com um voo de 13 horas chegamos no dia seguinte a noite e embarcamos para YuShu, sudeste da China, na manhã seguinte. A cidade de YuShu sofreu um terremoto em abril de 2010 que praticamente destruiu toda a região. Ao descer da escada do avião senti o primeiro impacto. Já no solo veio a falta de ar. Como a paisagem era muito bonita comecei a tirar umas fotos da pista e do aeroporto, o que desviou minha atenção da falta de oxigénio. Olhando em volta, sentindo frio, minha sensação era de que algo extraordinário iria acontecer comigo naquele canto da terra.

No saguão do aeroporto umas 30 pessoas esperavam por Khenpo. Muita alegria na recepção. Dali partimos em uns dez carros para a cidade. Iríamos ficar na casa de um dos irmãos de Khenpo. Atravessamos o vale do aeroporto e na cidade de YuShu o cenário era um misto de destruição e reconstrução. Chegando na vila da família, montada com barracas do exercito chinês, Khenpo foi instalado em uma delas. Estava toda decorada com cartazes e banners de santos e mestres do budismo tibetano e uma reprodução enorme de uma foto de Khenpo com Dalai Lama. Alguns sofás ladeavam o interior da cabana para as pessoas sentarem e ouvirem Khenpo e seus ensinamentos durante o dia, e que serviam de cama à noite. Ali comecei a perceber os traços da cultura tibetana e sua relação com o budismo.

Na vila com 9 tendas, no centro da cidade, moravam, além do irmão mais velho de Khenpo e sua mulher, umas 30 crianças de 2 a 15 anos, um outro irmão que era motorista de taxi e vários sobrinhos. As crianças e sobrinhos, quase todos vindos das montanhas e vilas distantes, estavam ali para serem educadas. Isso acontecia até o evento do terremoto. Hoje a escola da vila está proibida de funcionar e todas as crianças são obrigadas a estudar em escola chinesa onde não se ensina o idioma nativo. Apenas de noite, depois do jantar, um professor faz o reforço da educação na língua tibetana.

Em conversas com pessoas da comunidade, percebe-se a indignação, pois dizem eles que depois da invasão os chineses tomaram conta do comércio, criaram indústrias e estabeleceram uma linguagem específica para transações bancárias e comerciais. “Estão matando nossa cultura” dizem eles. Talvez esta seja uma das principais razões do porque o budismo é tão disseminado no ocidente nos dias de hoje, pois trata-se de preservar o que sobra da cultura tibetana em meio à destruição chinesa.

– Khenpo, onde é que eu posso fazer minhas “necessidades”?, perguntei assim que coloquei minha bagagem na tenda em que iria ficar. Ele chamou um dos sobrinhos e pediu que me mostrasse. Ficava entre o estacionamento de carros e a entrada da vila. Eram três paredes de tijolos empilhados com mais ou menos um metro de altura e um pano como porta. Sem teto, com um buraco no chão, era ali que toda aquela comunidade, sem a higiene que estamos acostumados, faziam suas necessidades. O cheiro era muito forte, principalmente nos dias de sol. Olhei aquilo e pensei que nunca conseguiria sentar ali. Mesmo porque, estando de cócoras, a cabeça da pessoa ficava à vista. Ah!, isso até na hora do “aperto”, pois utilizei aquele “banheiro” depois de ver que tanto os adultos quanto as crianças faziam aquilo com naturalidade.

Ficamos três dias em Yu Shu. Nesses dias Khenpo visitou outros membros da sua família. Cada visita, além das conversas (idioma tibetano), comíamos carne de yak (gado local, parecido com búfalo) frutas, sopas e sampa (pó de cevada, misturado com manteiga e chá). Como não conheço o idioma tibetano, observava muito os comportamentos e reações das pessoas durante os encontros. Quando precisava, pedia para Khenpo traduzir para mim em inglês.

Em direção às montanhas

Saímos cedo de Yu Shu. Com uma caminhonete lotada de comida, carnes e verduras, além das nossas malas, os quatro, Khenpo, o irmão mais velho, o taxista e eu viajamos 8 horas montanha acima. A paisagem era deslumbrante. O que se percebe é que os chineses estão reconstruindo tudo o que foi destruído pelo terremoto e investindo em grandes obras como hidroelétricas, asfaltando estradas e construindo vilas inteiras de casas. No entanto, o que era arquitetura tibetana estava sendo construído no estilo chinês.

Como não sabia para onde ia, nem quando chegaria, pude estar presente aos detalhes a cada momento da viagem. Tudo era novo, diferente, fresco. Meditei bastante de olhos abertos, pois não havia conversas e o que se ouvia era o som do motor do carro. Nos momentos que parávamos para descansar ou urinar, dava para sentir o silêncio profundo daquelas vales montanhosos.

Chegamos às 7 horas da tarde na casa de uma irmã de Khenpo. Uma família numerosa vivendo em uma vila com quatro casas num platô entre as montanhas e um rio raso e largo. A casa tinha uma sala grande que servia de cozinha, sala de jantar e estar e a noite dormíamos ali. O contraste da situação era ver o fogão da cozinha e os utensílios muito antigos juntos com garrafas plástico de pepsi-cola e refrigerantes amarelos, verdes, vermelhos, etc. Também sobre o balcão via-se pacotes de miojo, que comiam cru, salgadinhos industrializados, tudo de marca chinesa, porém falsificados e de péssimo sabor, como é característico dos produtos chineses falsificados vendidos no ocidente. No entanto, eram os únicos resquícios de modernidade, além de carros e motos que percebi naquelas paragens.

Algumas pessoas das vizinhança vieram para conversar com Khenpo que, além das palavras, distribuía presentes. Dormimos ali naquela sala a noite. Entre roncos e pingos de chuva batendo em nossas camas, o sono foi profundo, pois estávamos cansados da viagem. No dia seguinte deveríamos visitar um mestre que vivia em uma gruta nos picos mais altos de uma montanha, porém acordamos com uma chuva forte e o caminho estava muito lamacento. Ficamos ali naquela sala, quarto e cozinha durante o dia esperando que o tempo mudasse para seguir adiante.

Percebi que as condições climáticas determinam a forma e o ritmo da vida daquela gente. Eles conhecem a natureza e sabem que fazem parte dela. Vivem assim há milhares de anos e têm resistências à mudanças e à modernidade, principalmente a imposta pelos chineses depois da invasão. Na manhã seguinte fomos de carro até um platô na base da montanha. Ali encontramos várias homens com motos que iriam nos levar ao topo para vermos o mestre Pema Dordje.

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